conheço uma mulher. possui longos e alvos cabelos que prende cuidadosamente com um travessão de prata envelhecida, de outra era. tem um olhar distante, de viajante. fica longas horas a observar o percurso das nuvens que se passeiam na sua janela. não sei se as observa ou se deseja secretamente que a levem para parte incerta.
segundo contam os vizinhos, pouco fala, pouco se dá a conhecer. mas intrigava-me o seu ar soturno, melancólico, sempre a espreitar por detrás daqueles cortinados às flores tão roçados do tempo. perguntava-me se algum dia terá sido menina ou se sempre se quedou na monotonia dos dias, no rotineiro hábito.
há dias deixei-lhe no parapeito da janela um insignificante malmequer. olhou-o por instantes e pareceu-me antever nos seus olhos de avelã um brilho indelével, um quase imperceptível sorriso que se queria escapar dos seus lábios. voltei no dia seguinte e no outro e no outro. não foi difícil conquistá-la.
ontem muni-me de coragem e bati-lhe à porta. uma porta velha e branca, com um pequeno pássaro de madeira pendurado. demorou a abrir. parecia já destreinada nas artes de socializar, como uma criança envergonhada que se esconde nas saias da mãe. ofereceu-me chá. - chá de cidreira, do quintal. toma-lo com uma colherinha de mel?
não parecia estranhar a minha presença em sua casa. como se estivesse à minha espera.
a colher a mexer o chá, num ritmo compassado era tranquilizante. tudo repousava no mais perfeito sossego. olhei em volta e dei conta de fotografias nas paredes, antigas malas, empoeiradas, uma manta de retalhos meticulosamente dobrada sobre a poltrona que ficava de frente para a lareira, um relógio de cuco. na lareira uma segura chama crepitava. não sei dizer se o rubor das faces da velha era pura timidez ou apenas o calor acolhedor do lume.
parecia perceber o que me levava ali. numa voz sussurrada, pequena, comentou - as andorinhas já partiram. os meus ossos adivinham chuva para os próximos dias.
entre uma e outra chávena de chá lá me foi contando as estórias que carregava. estórias pequenas, de sonhos desfeitos, sonhos realizados, simplicidades. - e agora? já não sonha? - ousei perguntar. olhou para mim demoradamente, como se me perscrutasse a alma e por fim ergueu-se da cadeira de baloiço. pegou-me na mão. levou-me ao quintal e o que vi deixou-me um sabor agridoce na boca. bem ao fundo do quintal, encontrava-se uma árvore de ramos semi-despidos. dos seus galhos pendiam incontáveis retalhos de tecidos com cores esbatidas, esvoaçando na brisa fresca daquele fim de tarde. acariciei-os ao de leve.
- os sonhos... estão aí. suspensos na lembrança do que fui. sou uma sombra somente. um retalho por cada sonho perdido, às vezes esquecido. não tos posso emprestar porque já não me pertencem. mas podes sonhar os teus. sonha por mim, também. desculpa se te assusto, mas há muitos anos que ninguém me oferecia uma flor.
foi naquele instante que, por detrás da pele engelhada, enrugada, vislumbrei a menina que fora.
segundo contam os vizinhos, pouco fala, pouco se dá a conhecer. mas intrigava-me o seu ar soturno, melancólico, sempre a espreitar por detrás daqueles cortinados às flores tão roçados do tempo. perguntava-me se algum dia terá sido menina ou se sempre se quedou na monotonia dos dias, no rotineiro hábito.
há dias deixei-lhe no parapeito da janela um insignificante malmequer. olhou-o por instantes e pareceu-me antever nos seus olhos de avelã um brilho indelével, um quase imperceptível sorriso que se queria escapar dos seus lábios. voltei no dia seguinte e no outro e no outro. não foi difícil conquistá-la.
ontem muni-me de coragem e bati-lhe à porta. uma porta velha e branca, com um pequeno pássaro de madeira pendurado. demorou a abrir. parecia já destreinada nas artes de socializar, como uma criança envergonhada que se esconde nas saias da mãe. ofereceu-me chá. - chá de cidreira, do quintal. toma-lo com uma colherinha de mel?
não parecia estranhar a minha presença em sua casa. como se estivesse à minha espera.
a colher a mexer o chá, num ritmo compassado era tranquilizante. tudo repousava no mais perfeito sossego. olhei em volta e dei conta de fotografias nas paredes, antigas malas, empoeiradas, uma manta de retalhos meticulosamente dobrada sobre a poltrona que ficava de frente para a lareira, um relógio de cuco. na lareira uma segura chama crepitava. não sei dizer se o rubor das faces da velha era pura timidez ou apenas o calor acolhedor do lume.
parecia perceber o que me levava ali. numa voz sussurrada, pequena, comentou - as andorinhas já partiram. os meus ossos adivinham chuva para os próximos dias.
entre uma e outra chávena de chá lá me foi contando as estórias que carregava. estórias pequenas, de sonhos desfeitos, sonhos realizados, simplicidades. - e agora? já não sonha? - ousei perguntar. olhou para mim demoradamente, como se me perscrutasse a alma e por fim ergueu-se da cadeira de baloiço. pegou-me na mão. levou-me ao quintal e o que vi deixou-me um sabor agridoce na boca. bem ao fundo do quintal, encontrava-se uma árvore de ramos semi-despidos. dos seus galhos pendiam incontáveis retalhos de tecidos com cores esbatidas, esvoaçando na brisa fresca daquele fim de tarde. acariciei-os ao de leve.
- os sonhos... estão aí. suspensos na lembrança do que fui. sou uma sombra somente. um retalho por cada sonho perdido, às vezes esquecido. não tos posso emprestar porque já não me pertencem. mas podes sonhar os teus. sonha por mim, também. desculpa se te assusto, mas há muitos anos que ninguém me oferecia uma flor.
foi naquele instante que, por detrás da pele engelhada, enrugada, vislumbrei a menina que fora.